​​​​​​​Taxa Selic e condenações civis

​​​​​​​Taxa Selic e condenações civis

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Nas ações que tenham por objeto o cumprimento de obrigação de pagar valores, o juiz, se julgar procedente o pedido, deve se pronunciar sobre os juros [1] e a correção monetária, além de definir a respeito das verbas de sucumbência (artigo 322, §1º, do CPC), mesmo que não tenha havido requerimento da parte. Também serão consideradas incluídas no pedido as prestações periódicas vencidas no curso da demanda (artigo 323 do CPC). Esses são os denominados pedidos implícitos.

Os juros de mora representam uma indenização pelo descumprimento de uma obrigação legal ou negocial. Eles “funcionam como uma sanção pelo retardamento” no cumprimento de uma obrigação. Não se confundem com os juros remuneratórios, que traduzem uma remuneração “pelo capital emprestado”, que representam uma espécie de preço pelo “‘aluguel’ do capital” [2].

Por sua vez, a correção monetária consiste num mecanismo de reposição do valor da moeda, de preservação de seu valor aquisitivo, corroído no tempo pelos efeitos da inflação. Ela tem o condão de impedir o locupletamento indevido do obrigado, porém não representa uma penalidade” [3].

Assim, na hipótese de condenação ao pagamento de valores, deve-se assegurar que sejam acrescidos juros moratórios desde a citação para as obrigações ilíquidas, nos termos do artigo 240 do CPC e artigo 405 do CC, e desde o vencimento nas obrigações líquidas, certas e vencidas (artigo 397 do CC). Porém, no caso de condenação por ato ilícito (responsabilidade extracontratual, também denominada aquiliana), os juros de mora são devidos a partir do evento danoso (artigo 398 do CC e Súmula nº 54 do STJ). Por sua vez, a correção monetária incide, nas obrigações líquidas e certas, a contar do respectivo vencimento; nas obrigações ilíquidas, a contar do ajuizamento da ação (artigo 1º da Lei nº 6.899/1981) [4].

Mas qual índice deve ser utilizado para calcular os juros de mora e a correção monetária? Quanto aos juros moratórios, tem prevalecido o entendimento de que, nas condenações civis em geral, devem ser fixados pela taxa Selic [5], conforme inteligência do artigo 406 do CC c/c o artigo 161, §1o, do CTN [6]. Este último dispositivo legal traz uma ressalva que faz incidir a regra do artigo 39, §4o, da Lei no 9.250/1995.[7]

Então, no ano de 2008, no Recurso Especial no 1.102.552/CE, da relatoria do saudoso ministro Teori Albino Zavascki (que depois veio a ser nomeado para o STF), submetido ao regime do artigo 1.036 do CPC, o Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua corte especial, decidiu que: “Atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o mencionado dispositivo (artigo 406 do CC/2002) é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, §4º, da Lei no 9.250/95, 61, §3º, da Lei no 9.430/96 e 30 da Lei no 10.522/02)’ (Eresp 727.842, DJ de 20/11/08)” (ver tese do Tema nº 176 do STJ).

Corroborando essa linha de intelecção, em 2021, o STF, no julgamento das ADIs nos 5867 e 6021 e nas ADCs nos 58 e 59, fixou tese no sentido de que, na atualização dos débitos trabalhistas, devem ser aplicados, “até que sobrevenha solução legislativa, os mesmos índices de correção monetária e de juros vigentes para as condenações cíveis em geral, quais sejam a incidência do IPCA-E na fase pré-judicial e, a partir do ajuizamento da ação, a incidência da taxa Selic (artigo 406 do Código Civil), à exceção das dívidas da Fazenda Pública, que possuem regramento específico” [8].

No STJ também se consolidou o entendimento de que “a incidência de juros moratórios com base na taxa Selic não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária”, cumulação que representaria bis in idem. Há inúmeros julgados em que se afirma que “a taxa Selic não pode ser cumulada com qualquer outro índice, seja de atualização monetária, seja de juros, porque ela inclui, a um só tempo, o índice de inflação do período e a taxa real de juros”. Nesse sentido são os seguintes precedentes da Primeira Seção do STJ: REsp 1.111.189/SP, relator ministro Teori Albino Zavascki, DJe de 25.9.2009; REsp 1.111.175/SP, relator ministro Denise Arruda, DJe de 1º/12/2009; REsp 1.706.536/RS, Segunda Turma, relator ministro Herman Benjamin, julgado em 11/09/2018; REsp nº 1.875.198/SP, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 3/12/2020.

Todavia, no REsp 1.795.982/SP, da relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, afetado à Corte Especial do STJ, foi retomada a discussão sobre a adequação do emprego da Selic como índice de juros moratórios nas condenações civis em geral. O relator está propondo a substituição da Selic pela taxa de 1% ao mês, conforme disposto no artigo 161, §1º, do CTN. O julgamento ainda não foi concluído [9]. Talvez, o Tribunal da Cidadania mude sua compreensão sobre a temática, mas a Corte Suprema, nas ações diretas antes apontadas, reputou correta a utilização da Selic, entendimento que está em consonância com a literalidade dos comandos legais relativos à matéria (artigo 406 do CC, artigo 161, §1o, do CTN e artigo 39, §4o, da Lei no 9.250/1995).

É sabido que, conforme a natureza da dívida, nem sempre o termo inicial dos juros moratórios coincide com o termo inicial da correção monetária. Esta pode ser devida desde o vencimento da dívida ou desde o evento danoso, por exemplo. Logo, no atual cenário legislativo e jurisprudencial, nas hipóteses da Súmula nº 43 do STJ [10] ou da tese do Tema nº 898 daquela corte [11], em que a correção monetária é devida a partir do evento danoso, ela deverá ser calculada pelo IPCA-E desde aquele momento até o dia que antecede a data da citação, a partir de quando incidirão os juros de mora pela taxa Selic, que engloba a correção monetária. Nessa perspectiva, fica prejudicada a aplicação da Súmula nº 362 do STJ (“A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento”).

Essas soluções, conquanto decorram estritamente da disciplina legal vigente, mostram que a matéria reclama um aprimoramento legislativo ou um novo e harmonioso olhar interpretativo por parte das cortes de vértice do sistema de justiça. Giovanni Ettore Nanni [12] bem alerta para o fato de que a taxa Selic é um índice inadequado para servir de taxa legal de juros de relações obrigacionais civis porque é imprecisa e flutuante, não dotada de previsibilidade, já que norteada pela “conveniência e o momento da política econômica, sendo alterada para cima ou para baixo de acordo com uma série de fatores”, como a inflação, o risco de investidores e as metas de crescimento, conforme o cenário macroeconômico. Na sua visão, a referida taxa “congrega diversas variantes inerentes à economia do país, que são dissociadas do escopo da definição da taxa legal de juros em relações obrigacionais”. Ainda, segundo Nanni [13], o entendimento de que a Selic engloba a correção monetária (de forma que sua cumulação com um índice dessa natureza configura bis in idem) gera uma colisão de dispositivos e a anulação dos que regem a atualização monetária, que é devida a título diverso, qual seja, recomposição de perdas inflacionárias. Nessa mesma linha de inteligência é o enunciado nº 20 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal [14]:

“A utilização da taxa Selic como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do artigo 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o artigo 192, §3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao ano.” 

De fato, o emprego da Selic como índice de juros de mora e de correção monetária mistura dois institutos que têm propósitos diversos. Os juros moratórios, como visto, representam uma indenização, isto é, têm o objetivo de indenizar o credor pelo descumprimento de um pacto, funcionando como uma sanção ao devedor pelo retardamento no cumprimento da obrigação [15].

A correção monetária é um reajuste destinado a preservar o poder aquisitivo da moeda diante da sua desvalorização nominal provocada pela inflação. Ela não representa nenhum plus, isto é, nenhum acréscimo remuneratório efetivo, mas, tão somente, a recomposição da perda do poder aquisitivo da moeda corroído pela inflação verificada entre o período em que houve o inadimplemento. Também há de se considerar que, embora os termos finais dos juros moratórios e da correção monetária coincidam (incidem até o pagamento da dívida), geralmente são diferentes os termos iniciais. É preciso que se interprete e aplique a lei de tal forma que cada instituto cumpra seu papel.

De outro lado, porém, há quem pondere que a Selic, conquanto de caráter volátil, sensível a oscilações por diversos fatores, “não é taxa pura de juros, pois abrange a atualização monetária e a expectativa inflacionária” [16], de modo que o Judiciário tem vedado sua cumulação com qualquer outro índice de correção monetária (Súmula nº 523 do STF e, v.g., REsp nº 1.875.198/SP, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 3/12/2020).

O assunto, como dito, foi enfrentado pelo STF nas ADIs nos 5867 e 6021 e nas ADCs nos 58 e 59, enquanto o STJ voltou a discuti-lo no REsp 1.795.982/SP. Ainda, nas ADIs nºs 7047 e 7064 está em questão a (in)constitucionalidade da Selic como índice de correção monetária e de compensação da mora nas condenações da Fazenda Pública, indexador que foi imposto pela Emenda Constitucional nº 113/2021 (artigo 3º) [17]. Nesse contexto, o que se espera é que as soluções sejam adequadas, breves e concordes (na medida do possível), tomando em conta a natureza e os reais desideratos dos juros moratórios e da correção monetária, pois, até aqui, inúmeras já foram as discussões sobre esses critérios, os quais deveriam ser claros, apropriados, estáveis e justos.

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[1] A Súmula nº 254 do STF dispõe: “Incluem-se juros moratórios na liquidação, embora omisso o pedido inicial ou a condenação”.

[2] FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Vol. Único. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 867.

[3] NANNI, Giovanni Ettore et alComentários ao Código Civil. Direito Privado Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 619.

[4] Ainda, por meio da Súmula nº 632, o STJ definiu que, “nos contratos de seguro regidos pelo Código Civil, a correção monetária sobre a indenização securitária incide a partir da contratação até o efetivo pagamento”.

[5] O juiz federal Lincoln Pinheiro Costa lembra que “o Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic) é um sistema informatizado que se destina à custódia de títulos escriturais de emissão do Tesouro Nacional e do Banco Central, bem como ao registro e à liquidação das operações com os referidos títulos. Tal sistema permite que a liquidação financeira das operações realizadas com títulos federais seja feita pelo resultado líquido”. A taxa SELIC, segundo a circular nº 2.900/1999 do Banco Central do Brasil, é a taxa média ajustada dos financiamentos diários apurados no Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic) para títulos federais (COSTA, Lincoln Pinheiro. Os juros de mora no Código Civil. Revista da I Jornada de Estudos de Direito Civil e Processo Civil. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Brasília: ESMAF, 2010, p. 259).

[6] “Artigo 161. O crédito não integralmente pago no vencimento é acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis e da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas nesta Lei ou em lei tributária.

  • 1º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês”.

[7] “Artigo 39, §4º. A partir de 1º de janeiro de 1996, a compensação ou restituição será acrescida de juros equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic) para títulos federais, acumulada mensalmente, calculados a partir da data do pagamento indevido ou a maior até o mês anterior ao da compensação ou restituição e de 1% relativamente ao mês em que estiver sendo efetuada”.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIs nos 5867 e 6021 e ADCs nos 58 e 59. Relator(a): ministro Gilmar Mendes. Brasília, 07/12/2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5335099. Acesso em: 07/08/2023.

[9] Informações disponíveis em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/01032023-Relator-vota-contra-utilizacao-da-taxa-Selic-para-a-correcao-de-dividas-civis.aspx.  Acesso em: 07/08/2023.

[10] Súmula nº 43 do STJ: “Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo”.

[11] Tese do Tema nº 898 do STJ: “A incidência de atualização monetária nas indenizações por morte ou invalidez do seguro DPVAT, prevista no §7º do artigo 5º da Lei n. 6194/74, redação dada pela Lei n. 11.482/2007, opera-se desde a data do evento danoso”.

[12] NANNI, Giovanni Ettore et alComentários ao Código Civil. Direito Privado Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 664.

[13] NANNI, Giovanni Ettore et alComentários ao Código Civil. Direito Privado Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 664.

[14] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Revista das jornadas do CJF: direito civil, direito comercial, direito processual civil, prevenção e solução extrajudicial de litígios / Superior Tribunal de Justiça, [Gabinete do Ministro Diretor da Revista], Conselho da Justiça Federal. – Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 2018, p. 26

[15] FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Vol. Único. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 867.

[16] FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Vol. Único. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 868.

[17] Artigo 3º Nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente”.

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Flávio da Silva Andrade é juiz federal da Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais em Uberlândia/MG, doutor e mestre em Direito pela UFMG.

Revista Consultor Jurídico, 4 de setembro de 2023, 12h26