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Uma temática que sempre enseja muita polêmica refere-se à possibilidade de flexibilização da lei trabalhista, principalmente quanto à prevalência do negociado sobre o legislado.
De início, impende destacar que a Constituição preceitua em seu artigo 7º, inciso XXVI [1], a autonomia privada coletiva, de modo a conferir validade às normas oriundas de convenções e acordos coletivos. E, no mesmo sentido, as Convenções 98 [2] e 154 [3] da Organização Internacional do Trabalho (OIT) garantem o direito e o fomento à negociação coletiva.
Entrementes, em se tratando de Direito Coletivo do Trabalho existem alguns princípios que compõem esse sistema jurídico, dentre eles o princípio da adequação setorial negociada. Acerca da temática, oportunos são os ensinamentos do ministro do TST Maurício Godinho Delgado [4]:
“Este princípio trata das possibilidades e limites jurídicos da negociação coletiva. Ou seja, os critérios de harmonização entre as normas jurídicas oriundas da negociação coletiva (mediante a consumação do princípio de sua criatividade jurídica) e as normas jurídicas provenientes da legislação heterônoma estatal.
(…). Pelo princípio da adequação setorial negociada as normas autônomas juscoletivas construídas para incidirem sobre certa comunidade econômica-profissional podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista desde que respeitados certos critérios objetivamente fixados. São dois critérios autorizativos: a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b) quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta)”.
Verifica-se, assim, que a negociação coletiva encontra limites objetivos, de sorte que este ajuste entre sujeitos coletivos não prevalecerá se materializado através de ato estreito de renúncia.
Feita tal contextualização, é certo frisar que, na data de 2/6/2022, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao apreciar o Tema 1.046 (Tema 1046) da Tabela de Repercussão Geral, deu provimento ao agravo em recurso extraordinário (ARE 1.121.633) que abordava a discussão da prevalência do negociado sobre o legislado, invocando o princípio da adequação setorial negociada [5].
Por maioria de votos, a tese fixada foi a seguinte:
“São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
A Suprema Corte, portanto, decidiu que a redução de direitos por acordos coletivos deve respeitar as garantias mínimas constitucionalmente asseguradas aos trabalhadores. É importante destacar que esse histórico julgamento, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, trouxe como leading case a problemática das horas in itinere, ou seja, o tempo gasto pelo trabalhador no deslocamento entre a sua residência e o trabalho [6], e que, atualmente, não mais subsiste na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) após a edição da Lei da Reforma Trabalhista.
Neste atual cenário jurídico, em se tratando de direitos cobertos pela indisponibilidade absoluta, tal como aqueles descritos nas hipóteses elencadas no artigo 611-B da CLT acrescidos pela Lei 13.467/2017, não mais poderá haver negociação coletiva. Isto porque, tal como ponderou o ministro Gilmar Mendes em seu voto, em qualquer caso devem ser respeitados os direitos assegurados na Carta da República de 1988 e que garantam um patamar mínimo civilizatório ao cidadão-trabalhador.
A partir do julgamento pela Suprema Corte, iniciou-se a formação de uma nova jurisprudência no âmbito do Poder Judiciário Trabalhista. A título de exemplo, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) foi provocado a decidir, no contexto da temática da negociação coletiva, uma situação envolvendo a jornada em escala 12×36, em ambiente insalubre, sem autorização ministerial [7]. Ao proferir a decisão, o colegiado entendeu que a matéria ventilada envolvia direito infraconstitucional disponível, e, por isso, passível de negociação.
Em seu voto, a ministra relatora destacou que:
“É possível reconhecer que a jornada em regime de 12×36, ainda que em ambiente insalubre, não configura direito absolutamente indisponível, podendo ser negociado coletivamente, afastando a necessidade legal de autorização ministerial, sendo, inclusive, prática corriqueira e tradicional nos ambientes hospitalares”.
Em outro caso no qual a norma coletiva previa a natureza indenizatória da parcela denominada “premiação” [8], o Tribunal Regional do Trabalho havia reputada que a habitualidade do seu pagamento seria suficiente para afastar a previsão em norma coletiva quanto ao seu caráter indenizatório. Contudo, tal decisão foi reformada pelo TST.
Para tanto, eis as palavras do ministro relator no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, para quem deve se considerar a autonomia da vontade coletiva tal como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:
“O entendimento de que deve ser afastada a natureza indenizatória dos prêmios QOH, assiduidade e segurança, prevista em norma coletiva, não pode prevalecer, visto que o caso em análise não diz respeito diretamente à restrição ou à redução de direito indisponível, aquele que resulta em afronta a patamar civilizatório mínimo a ser assegurado ao trabalhador, mas apenas à ‘natureza jurídica de prêmios'”.
É certo que a Lei 13.467/2017, além de ter relacionadas no artigo 611-B da CLT as hipóteses infensas à negociação coletiva, também inseriu o artigo 611-A [9] ao texto celetário estabelecendo, nas situações nele previstas, casos em que a convenção coletiva e/ou o acordo coletivo de trabalho terão prevalência sobre a legislação infraconstitucional. Esse referido dispositivo legal (611-A da CLT) traz um rol meramente exemplificativo em que permitida a livre negociação coletiva, se comparado àquele rol fechado do artigo 611-B da CLT que traz as hipóteses “numerus clausus” em que a negociação coletiva encontra expressa proibição [10].
Em arremate, a jurisprudência do STF fixou entendimento pela validade de acordo ou convenção coletiva de trabalho que limitam ou suprimem direitos trabalhistas são válidas, desde que seja assegurado um patamar civilizatório mínimo ao trabalhador. Tal supressão e/ou redução deve, porém, respeitar os direitos indisponíveis. Doravante, as cláusulas normativas de trabalho não podem ferir um patamar civilizatório mínimo, composto, em linhas gerais, pelas normas constitucionais, pelas normas de tratados e convenções internacionais incorporados ao direito brasileiro e pelas normas que, mesmo infraconstitucionais, asseguram garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores.