Lei 14.611/2023 endurece a busca pela efetividade da isonomia salarial

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Sancionada em 3/7/2023, publicada no dia seguinte, pelo Diário Oficial da União, está em vigor a Lei nº 14.611/2023, que dispõe a respeito de igualdade de salário e de critérios remuneratórios entre homens e mulheres.

A lei adere a um aparente compromisso das instituições brasileiras com o trabalho feminino e que não tem relação direta com determinada linha partidária ou governamental.

Afinal, ainda na constância do governo que precedeu o atual, foi aprovada e entrou em vigor a Lei nº 14.457/2022, que instituiu o “Programa Emprega + Mulheres”, trazendo medidas de apoio à parentalidade na primeira infância, à parentalidade em geral, à qualificação das mulheres com vistas à ascensão profissional, ao apoio ao retorno ao trabalho após a licença-maternidade, à prevenção e combate ao assédio sexual e outras formas de violência no contexto do trabalho e ao estímulo de microcrédito para mulheres.

A nova lei trabalhista tem apenas sete artigos e não cria, propriamente, um direito. Afinal, o direito à isonomia salarial para o trabalho de igual valor não é uma novidade, já estando positivado na CLT por meio do artigo 461, que tradicionalmente postula a obrigatoriedade da equiparação salarial quando existe idêntica função e prestação de trabalho de igual valor ao mesmo empregador e no mesmo estabelecimento empresarial. Aliás, o caput do artigo 461 da CLT já estabelece que esse dever de igualdade salarial deve prevalecer sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade.

Indo além, a previsão era inclusive constitucional, na medida em que o inciso XXX do artigo 7º da Constituição Federal já trazia a “…proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.

A novidade, assim, não repousa propriamente na criação de um direito, mas no endurecimento das medidas e ferramentas para a efetivação deste direito previamente existente.

A lei nº 14.611/2023 acrescentou ao artigo 461 da CLT os parágrafos 6º e 7º, que respectivamente estabelecem que em havendo discriminação salarial “…por motivo de sexo, raça, etnia, origem ou idade”, o pagamento das diferenças salariais não fastará o direito de ação de indenização por danos morais e sujeitará o empregador que praticou a discriminação salarial a multa equivalente a dez vezes o valor do novo salário devido ao empregado discriminado, que pode ser elevada em dobro no caso de reincidência.

No que diz respeito aos danos morais, não há novidade, pois o ordenamento anterior não excluía ou restringia o direito de ação. Toda(o) e qualquer empregada(o) discriminada(o) do ponto de vista salarial poderia invocar, perante o Judiciário, o reconhecimento de ofensa extrapatrimonial para além da mera questão das diferenças de salário, cabendo ao órgão julgador, com base no caso concreto, adotar decisão. A positivação desta possibilidade parece ter sido adotada mais como um “recado” ao empregador a respeito dos outros desdobramentos que podem advir de uma discrepância salarial injustificada.

Já a multa administrativa que pode ser imposta de fato sofreu um importante impacto. Antes da vigência da nova lei, em caso de discrepância salarial o empregador poderia se sujeitar a multa que equivalia a, no máximo, dois salários-mínimos regionais. Agora, a multa é específica e bastante superior, correspondendo a no mínimo o décuplo do “novo salário” do empregado discriminado (e não o décuplo da diferença salarial).

Para além do aumento da multa administrativa, a Lei nº 14.611/2023 cria medidas para buscar garantir a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens. Passa a ser obrigatória a adoção de mecanismos de transparência salarial e de critérios remuneratórios: as empresas com cem empregados ou mais, passam a ser obrigadas a publicar semestralmente relatórios de transparência salarial e critérios remuneratórios que, preservando a privacidade de dados (conforme determina a LGPD), apresenta dados anonimizados que permitam a “…comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens, acompanhados de informações que possam fornecer dados estatísticos sobre outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade”. Caso tal relatório não seja publicado, a empresa fica sujeita a multa adicional de até 3% da folha salarial, limitada a cem  salários-mínimos.

Acaso identificada desigualdade salarial ou de critérios remuneratórios, a empresa ficará obrigada a apresentar e implementar um plano de ação visando à mitigação da discrepância, com metas e prazos e garantindo a participação de representantes de empregados, dentre os quais as entidades sindicais.

Para reforçar a transparência salarial e de critérios remuneratórios, o Poder Executivo passará a disponibilizar em plataforma digital de acesso público informações e indicadores de discrepâncias salariais entre homens e mulheres (além de outros indicadores não específicos para o mercado de trabalho, como de violência contra a mulher, de vagas em creches públicas, de acesso à formação técnica e superior e de serviços de saúde) que possam orientar a elaboração de políticas públicas, sempre respeitada a proteção de dados pessoais e dados sensíveis que a Lei nº 13.709/2018 (LGPD) estabelece.

A lei dispõe, ainda, que além da transparência salarial e de critérios remuneratórios, será instituído um reforço na fiscalização administrativa, por ato do Poder Executivo ainda pendente — e que deve ficar sob responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego.

Por fim, a nova legislação determina como medidas acessórias para a garantia da igualdade salarial e de critérios remuneratórios a disponibilização de canais específicos para denúncias de discriminação salarial, a  promoção e implementação de programas de diversidade e inclusão no ambiente de trabalho (que abranjam a capacitação de gestores, de lideranças e de empregados a respeito do tema da equidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, com aferição de resultados) e o fomento à capacitação e à formação de mulheres para o ingresso, a permanência e a ascensão no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens.

Embora a Lei nº 14.611/2023 seja invocada na mídia e em seu próprio preâmbulo como uma lei de proteção especificamente voltada ao trabalho feminino, na realidade ela ultrapassa esse campo de ação e se demonstra como uma lei que se volta a reforçar o combate a quaisquer discriminações salariais. Afinal, sua proteção abrange também as outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade.

Cabe aos empregadores, assim, além de adotar as novas previsões legais, com ajustes internos e um olhar mais atento às suas políticas remuneratórias de progressão de carreira, cuidar para que toda e qualquer discrepância salarial, que nem sempre é injustificada, fique limitada aos casos em que a lei considera lícita: os casos em que a função desempenhada no mesmo estabelecimento e para o mesmo empregador não é idêntica ou, ainda que o seja, não seja o trabalho prestado com “igual valor”, o que a lei define como aquele “feito com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica, entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço para o mesmo empregador não seja superior a quatro anos e a diferença de tempo na função não seja superior a dois anos”.

 é graduado em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pós-graduado em Direito Civil e mestre em Direito Privado, ambos pela Université Paris 2 – Panthéon-Assas (Sorbonne Universités) e sócio do Rocha e Barcellos Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 10 de julho de 2023, 16h25