Contribuição assistencial: o paradoxo do serviço obrigatório sem custeio obrigatório

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No último dia 12 de setembro, o STF (Supremo Tribunal Federal), por meio do Plenário Virtual, concluiu o julgamento dos embargos de declaração opostos nos autos do processo ARE 1.018.459, leading case do Tema 935 de repercussão geral da corte. Ao acolher os embargos, com efeitos infringentes, o STF passou a admitir a cobrança da contribuição assistencial prevista no artigo 513 da CLT, fixando a seguinte tese: “É constitucional a instituição, por acordo ou convenção coletivos, de contribuições assistenciais a serem impostas a todos os empregados da categoria, ainda que não sindicalizados, desde que assegurado o direito de oposição” [1].

Em uma tentativa de contribuir para as discussões que se colocam a respeito do tema, o presente artigo busca trazer algumas reflexões a partir da referida decisão do STF, passando por uma abordagem do contexto jurídico-legislativo recente, que assentou as bases para que o Supremo chegasse à conclusão, ainda que paradoxais, a qual chegou agora sobre a possibilidade de contribuição assistencial inclusive aos não filiados ao sistema sindical.

Contexto jurídico-legislativo recente

Para compreendermos a decisão precisamos, antes de tudo, voltar algumas casas e relembrar dois acontecimentos importantes para o sistema sindical brasileiro introduzido pela Constituição de 1988: a reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017) e o julgamento do STF preferido na Ação Declaratória de constitucionalidade (ADC) 55 e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.794.

Em 2017, quando editada a Lei nº 13.467, uma das alterações promovidas incidiu sobre o artigo 578 da CLT, que passou a apresentar a seguinte redação:

“CLT. Art. 578. As contribuições devidas aos sindicatos pelos participantes das categorias econômicas ou profissionais ou das profissões liberais representadas pelas referidas entidades serão, sob a denominação de contribuição sindical, pagas, recolhidas e aplicadas na forma estabelecida neste Capítulo, desde que prévia e expressamente autorizadas.”

Se antes obrigatória, com a reforma trabalhista a contribuição sindical passa a ser facultativa, somente sendo passível de ser exigida mediante prévia e expressa autorização do empregado.

A referida mudança na CLT foi ratificada pelo STF em 29 de junho de 2018. O artigo foi questionado na ADI 5.794 (e em outras 18 ADIs) e na ADC 55.

No julgamento das referidas ações, prevaleceu o entendimento do ministro Luiz Fux no sentido de não se admitir que a contribuição sindical seja imposta a trabalhadores e empregadores, enquanto a Constituição determina que ninguém é obrigado a se filiar ou a se manter filiado a uma entidade sindical [2].

O cenário inaugurado com a reforma trabalhista: um paradoxo criado

Com o fim da contribuição sindical obrigatória e levando em conta o objetivo da reforma trabalhista de estabelecer a primazia do negociado sobre o legislado, o cenário inaugurado para os sindicatos foi um verdadeiro paradoxo, como se buscará demonstrar a seguir.

Necessário um exame cauteloso do artigo 8º da Constituição, cujo caput enuncia ser “livre a associação profissional ou sindical, observado […]” o que se coloca em seus incisos. Propomos aqui uma leitura interpretativa não ortodoxa, ou seja, sem comentar todos os pontos desse artigo e que não abordará os incisos na ordem numeral direta, para que possamos chegar ao ponto central do problema.

É comum que se interprete a CF/88 com algum apego ao inciso V, que prevê que “ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato”, para justificar a impossibilidade de se estabelecer uma obrigatoriedade de contribuição aos sindicatos. Alertamos que a interpretação isolada desse inciso do artigo 8º não parece a mais apropriada, conduzindo ao paradoxo.

O inciso III, do mesmo dispositivo, traz a missão constitucional atribuída ao sindicato, ao prever que a ele “cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”. Aqui é importante observar que a norma constitucional fala em “categoria” e não em “associado”, porque o nosso sistema sindical se baseia em categoria profissional ou econômica.

Chega-se, então, ao inciso IV, do artigo 8º, da Constituição de 1988, que prevê que “a assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei”. A redação desse inciso parece não ser dotada da melhor técnica legislativa, mas esse seu traço pode ser explicado pelo contexto político da época da edição da Carta de 1988, que nos remete à seguinte observação: quando se aditou à norma originária expressão “independente da contribuição prevista em lei”, objetivou a manutenção da contribuição sindical obrigatória então prevista em lei [3]. Por óbvio, contribuição prevista em lei só pode ser obrigatória, caso contrário se tornaria uma doação espontânea dos trabalhadores. Não seria razoável imaginar que lei dispusesse sobre contribuição não impositiva.

Portanto, a principal crítica que pode ser feita à decisão do STF, quando declarou a constitucionalidade do fim da contribuição sindical, é que essa decisão violou a própria Constituição, na medida em que retirou dos sindicatos a sua principal fonte de custeio [4], indispensável para viabilizar a missão constitucional obrigatória de defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria. Serviço universal obrigatório demanda custeio universal obrigatório. Os meios necessários para os fins determinados.

A decisão proferida no Tema 935 de repercussão geral: uma tentativa do STF de resolver o paradoxo?

Com a conclusão do julgamento dos embargos de declaração no leading case do Tema 935 de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, concluiu-se ser constitucional a instituição, por norma coletiva (acordo ou convenção), de contribuições assistenciais para todos os empregados da categoria, mesmo que não sejam sindicalizados, desde que lhes seja assegurado o direito de oposição.

A decisão do Supremo se deu a partir de provocação, por meio de embargos de declaração, que apontava principalmente uma confusão pelos ministros entre a contribuição assistencial e a contribuição confederativa, quando proferida a decisão de 2017 nos autos do mesmo processo — Agravo no Recurso Extraordinário (ARE) 1.018.459, com repercussão geral reconhecida (Tema 935). À época, julgou-se inconstitucional a cobrança da contribuição a trabalhadores não filiados a sindicatos.

O recente entendimento, pela constitucionalidade da cobrança, foi justificado pelo relator, dentre outros motivos, com base na problemática da fonte de custeio dos sindicatos, diante do fim da obrigatoriedade de recolhimento da contribuição sindical.

Com relação à oposição individual, o STF não fechou bem a questão, de modo que não ficou claro como a oposição deverá ser manifestada na prática, assim como não houve definição ou balizamento dos valores.

Algumas reflexões sobre o tema e a questão que ainda permanece

Um primeiro ponto que merece ser lembrado diz respeito ao fato de que o sistema sindical brasileiro estabelecido pela Constituição de 1988 se baseou em três pilares, quais sejam a unicidade sindical, a representatividade compulsória e a contribuição sindical. Sem a contribuição, os sindicatos perdem a sua principal fonte de custeio, mas seguem sendo obrigados a representar a categoria.

Somente com a plena liberdade sindical, mediante alteração na Constituição, com a extinção da unicidade sindical e representação de categoria, é que se poderia falar em contribuição limitada aos representados, sendo que nesse contexto os representados seriam os associados ou os não-associados que quisessem aderir à norma coletiva.

Ao que nos parece, portanto, com a decisão do Supremo acerca da possibilidade de contribuição assistencial obrigatória (ainda que ressalvado o direito de oposição), a questão do financiamento dos sindicatos começa a ser remediada, sem, contudo, resolver o paradoxo do serviço obrigatório sem custeio obrigatório.

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[1] Supremo Tribunal Federal. “Ministro Gilmar Mendes altera posicionamento para acompanhar voto do ministro Barroso no sentido da constitucionalidade da contribuição assistencial.” Publicada em 24/04/2023. Disponível em https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=506130&ori=1. Acesso em 28 de setembro de 2023.
[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. “STF declara constitucionalidade do fim da contribuição sindical obrigatória.” Publicada em 29/06/2018. Disponível em https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=382819#:~:text=Por%206%20votos%20a%203,a%20obrigatoriedade%20da%20contribui%C3%A7%C3%A3o%20sindical. Acesso em 28 de setembro de 2023.
[3] A respeito da construção da redação do artigo 8, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, importante que se observe as modificações feitas ao longo das discussões pré-promulgação da Carta. Abaixo, transcrevemos como seria a redação deste dispositivo e como ela foi sendo modificada ao longo dessas discussões:
  1. Substitutivo I (26/8/1987): “[art. 9º] § 3º A assembléia geral fixará a contribuição da categoria, que deverá ser descontada em folha, para custeio das atividades da entidade.”
  2. Substitutivo 2 (18/9/1987): “[art. 9º] § 4º A assembléia geral fixará a contribuição da categoria que, se profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo de sua representação sindical.”
  3. Projeto A (24/11/1987) – Plenário (início do 1º Turno): “[art. 10] § 4º A assembléia geral fixará a contribuição da categoria, que, se profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo de sua representação sindical.”
  4. Projeto B (5/7/1988) – Plenário (início do 2º Turno): “[art. 8º] IV – a assembléia geral fixará a contribuição da categoria que, se profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo de sua representação sindical, independentemente da contribuição prevista em lei;”
  5. Projeto C (15/9/1988) – Plenário (final do 2º Turno): “[art. 7º] IV – a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei;”
  6. Projeto D (21/9/1988) aprovado pela Comissão de Redação Final e Texto Promulgado (5/10/1988): “[art. 8º] IV – a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei;”
  1. LIMA, João Alberto de Oliveira. A gênese do texto da Constituição de 1988 / João Alberto de Oliveira Lima, Edilenice Passos, João Rafael Nicola. Volume I. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2013. p. 94. Disponível em https://www.senado.leg.br/publicacoes/geneseconstituicao/pdf/genese-cf-1988-1.pdf Acesso em 28 de setembro de 2023.
[4] Sobre os reflexos dessa desobrigação, veja-se, por exemplo, os dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a respeito das contribuições sindicais repassadas nos últimos 5 anos para os sindicatos (https://static.poder360.com.br/2023/09/contribuicao-sindical-ministerio-trabalho-22set2023.png). Nesse interregno, a contribuição sindical despencou 98%, de R$ 3 bilhões em 2017 para R$ 58,1 milhões em 2022. A respeito desses dados, o artigo publicado, em 24 de setembro de 2023, no portal “Poder 360”, disponível em https://www.poder360.com.br/economia/contribuicao-sindical-despenca-98-em-5-anos/ Acesso em 28 de setembro de 2023.