Contrato de franquia, relação contratual de emprego e princípio da boa-fé

Tempo de leitura: 8 minutos

Segurança jurídica e boa-fé não admitem leviandade e oportunismo por parte do franqueado

Segurança jurídica e boa-fé se encontram nos negócios jurídicos, atos resultantes do legítimo exercício da autonomia privada que se qualificam, antes de mais, como negócios de seriedade pelos quais os particulares organizam os seus próprios interesses. Sendo assim, não admitem a leviandade, o oportunismo e a contraditoriedade desleal. Essa estaria caracterizada na conduta de quem, tendo livremente exercido a posição jurídica de franqueado, assumindo sem objeções essa posição e dela auferindo benefícios, vem, quando finda a relação, afirmar jamais ter sido franqueado, mas empregado, pretendendo, assim, receber a tutela da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

O contrato de franquia configura espécie do gênero etiquetado doutrinariamente como “contratos de distribuição”, consistindo, também, num contrato de colaboração. Tal qual previsto pelo art. 1º da Lei 13.966/2019,  esse contrato instrumentaliza um “sistema” por meio do qual um franqueador autoriza um franqueado “a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta”.

Ainda nos termos da lei, essa atividade não caracteriza “relação de consumo ou vínculo empregatício em relação ao franqueado ou a seus empregados, ainda que durante o período de treinamento”. Caracteriza, propriamente, um contrato empresarial, cujo conteúdo é marcado por heterogeneidade, ampla flexibilidade operacional, pessoalidade e confiança, traços que explicam a extrema dimensão cooperativa que vai muito além da cooperação básica necessária ao adimplemento satisfatório de qualquer contrato.  Na franquia, exige-se um trabalho conjugado para que as partes tenham o seu interesse realizado.

Do ponto de vista da Ciência do Direito, afirmou Evaristo de Moraes Filho, admite-se inexistir “nítida e inconfundível separação, absolutamente estanque e completa” entre trabalho autônomo e subordinado, pois há sempre uma certa dose de direção ou de controle, mesmo no trabalho autônomo.

Essa é a razão pela qual a correta qualificação da relação exige apurar a qualidade da subordinação: se pontual e temporária, ou geral e permanente; se obediente a ordens constantes e analíticas sobre o modo e o tempo em que deverá ser executada a prestação de serviços; se submissa a um controle acerca das atribuições inerentes à função ou ao modo de realizá-la; e, ainda, se há a fixação da retribuição em razão do tempo do trabalho subordinado, e não do resultado da atividade produtiva; se exigida a presença de um horário fixo e a prestação de serviço de caráter contínuo; além do fato da assunção, pela empresa, dos riscos do negócio, todos esses elementos sendo indicativos da subordinação em sentido jurídico.

Diferentemente, na relação de franquia, as instruções recebidas pelos franqueados, no mais das vezes, têm por função explicitar o conteúdo de determinadas obrigações, por exemplo, para resguardar o direito da franqueadora à higidez dos seus bens jurídicos imateriais, como a marca e a própria imagem no mercado – é dizer, sua reputação –, já que o contrato de franquia opera a cessão, mas não a livre disposição desses bens pelo franqueado.

A presença dessas instruções não destrói a autonomia profissional, compreendida no sentido jurídico. Como está na jurisprudência acerca de reclamações movidas por franqueados que alegavam ser empregados da franqueadora, não são aptas a caracterizar a subordinação, entre outras, a estipulação de metas ao franqueado (TST, RR 11385-78.2017.5.18.0015, j. em 08.05.2019); a participação em reuniões e de apresentação de relatórios informativos (TRT 3ª Região, ROT 0010260-26.2021.5.03.0024, j. em 12.04.2022); a interferência da franqueadora visando à padronização das lojas franqueadas (TST, AIRR 1628-30.2014.5.02.0009, j. em 23.03.2018; e, mais recentemente, TRT 1ª Região, ROT 0100853-38.2020.5.01.0042, j. em 29.03.2022). Estes elementos são inerentes ao contrato de franquia, não elidindo a sua caracterização.

Além disso, deve ser recordado que a assunção, pelo empregador, do risco da atividade econômica, é elemento do suporte fático do art. 2º, caput, da CLT. Em contrapartida, o empregado, por definição, não assume riscos. Portanto, se a situação concreta demonstrar que o franqueado assumiu os riscos da atividade de franquia; se não sofre sanções disciplinares por não comparecer ao trabalho; não tem jornada de trabalho imposta pelo franqueador; assume custos; e não é coagido a uma produção mínima para receber comissão, é fora de dúvidas que esse “modo de ser do exercício da atividade que lhes é privativa” conduz à inexistência de contrato de trabalho, traduzindo “uma autonomia, absolutamente incompatível com o modo de ser definidor daquele contrato (subordinação)”, como já destacavam Arnaldo Süssekind e Délio Maranhão.

Porém, conquanto os elementos tipificadores da relação de emprego e da relação de franquia sejam diversos, a consulta aos repertórios de jurisprudência tem demonstrado que, muito embora tendo exercido a posição de franqueado, alguns buscam o reconhecimento da posição de empregado. Nesse caso, poderá se caracterizar a ilicitude no modo de exercício dos direitos subjetivos, identificada pelo adágio nemo potest venire contra factum proprium, uma das manifestações do princípio da boa-fé objetiva em sua função corretora do exercício jurídico (Código Civil, art. 187).

Esse adágio traduz a rejeição da ordem jurídica à contraditoriedade desleal, violadora da relação de confiança legítima, tendo-a como ilícita quando manifestamente afrontosa à boa-fé. Dentre as figuras geradas pela função corretiva da boa-fé (Código Civil, art. 187) está o venire contra factum proprium.

É consensual definir o venire contra factum proprium como a proibição do “exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente pelo exercente”, como destaca Menezes Cordeiro, considerando-se a ninguém ser lícito exercer direito em contradição com o seu ato. Tecnicamente, o venire contra factum proprium configura um limite ao exercício de uma posição jurídica ativa. O desdizer o próprio comportamento anterior, exemplificado no fato de alguém pactuar livremente um contrato de franquia, assumindo-se como empresário e prosseguir com a sua execução, mas invocar em juízo, posteriormente, uma suposta posição como empregado, implica manifesta afronta à boa-fé, nos termos postos no art. 187 do Código Civil, como destaquei em trabalho doutrinário.

À primeira vista, poderia parecer que à liberalização das relações econômicas corresponderia uma relativa demissão do Direito e sua função ordenadora das relações sociais. Essa perspectiva estaria equivocada. Mudam as formas econômicas e jurídicas, muda a hermenêutica das formas tradicionais, mas o Direito está presente, como explicitam as regras legais e os arestos antes mencionados, a fim de frear o oportunismo contratual e as condutas que buscam “levar vantagem em tudo”: a contrariedade ao Direito não se dá apenas quando há uma ação violadora de uma norma jurídica, mas, igualmente, quando a conduta do agente, no exercício de direitos (em sentido lato) mostra-se disfuncional aos fins colimados pelos negócios jurídicos pelos quais se dá sua atuação na vida jurídico-social.

A função de coibição de comportamentos ilícitos deve ser feita, porém, com fundamento em critérios pré-constituídos, seja pela lei, seja pelo trabalho doutrinário. Deve, imperativamente, considerar as distinções, dogmaticamente traçadas, entre as figuras contratuais que habitam o Ordenamento. Daí a esperança de que os critérios acima expostos, bem como o apontamento dos requisitos que diferenciam relações de franquia e relações de emprego possam ter alguma valia de ordem prática.

Judith Martins-Costa – Livre-docente e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo, presidente do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC) e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Advogada e sócia fundadora de Judith Martins-Costa Advogados, foi professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992 a 2010)
Fonte: JOTA – 24/06/2023