Tempo de leitura: 11 minutos
No final do ano de 2022, havia sido aprovado pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 3.401/2008, que disciplinava novo procedimento para a declaração judicial da desconsideração da personalidade jurídica [1]. Contudo, o PL não foi sancionado pelo presidente da República, sendo a proposição vetada totalmente. De acordo com a mensagem nº 657, de 13 de dezembro de 2022 [2], enviada ao presidente do Senado Federal, as razões para o veto foram em virtude de sua “inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público”.
Com efeito, conforme já abordado em texto anterior, publicado nesta coluna [3], o incidente de desconsideração da personalidade jurídica tem por objetivo coibir fraudes e abusos da personalidade jurídica. Mas o que seria o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) na modalidade inversa ou invertida? E, mais, tal procedimento seria compatível com os princípios que norteiam a execução trabalhista?
De início, para uma melhor compreensão deste instituto, oportunas são as palavras de Bem-Hur Silveira Claus [4]:
“Enquanto a clássica desconsideração da personalidade jurídica opera como técnica para inibir a utilização indevida da autonomia patrimonial da sociedade personificada e visa responsabilizar o sócio pelas obrigações da sociedade, a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica opera para coibir a confusão patrimonial entre sócio e sociedade, responsabilizando a sociedade personificada por obrigações do sócio que oculta seu patrimônio pessoal no patrimônio da sociedade.
Em ambas as situações, a ordem jurídica resgata o latente caráter prospectivo do princípio da primazia da realidade, para superar a formal distinção com a qual distinguira o patrimônio da sociedade do patrimônio pessoal dos sócios, apagando as linhas imaginárias com que o direito autonomiza esses dois patrimônios com o objetivo de estimular o desenvolvimento da atividade econômica regular (CLAUS, 2010, p. 66).
Noutras palavras, a ficção teórica com a qual a formulação jurídica lograra superar o fato objetivo de que a atividade econômica tem por atores determinadas pessoas naturais retrocede pela saneadora potência com que o princípio da primazia da realidade restaura o primado da ordem jurídica, impedindo que eficácia jurídica da autonomia patrimonial reconhecida à sociedade personificada seja utilizada para prejudicar terceiros”.
Nesse diapasão, verifica-se que, a partir do aperfeiçoamento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica clássica, houve o avanço da desconsideração invertida, como uma ferramenta fundamental contra a “blindagem patrimonial”.
Do ponto de vista normativo, o §2º do artigo 133 do Código de Processo Civil [5] admite, de forma expressa, a desconsideração invertida da personalidade jurídica. Nesse desiderato, se constatado que os sócios atuaram com abuso de poder, ou, ainda, de forma ilícita, é plenamente possível a responsabilização do patrimônio da pessoa jurídica em razão das dívidas contraídas por aqueles.
Entrementes, é sabido que por diversas vezes, e não obstante os sócios sejam devidamente incluídos na fase executiva, a execução trabalhista resta infrutífera, de sorte que o credor não consegue ter satisfeito os seus créditos. Essa infeliz constatação frusta, em última análise, o objetivo maior do processo executivo, qual seja, fazer cumprir o que foi determinado no comando decisório, e, acima de tudo, satisfazer os direitos já garantidos e assegurados na fase de conhecimento.
Além do mais, o crédito trabalhista, em razão da sua natureza alimentar, está ligado diretamente com o princípio da dignidade da pessoa humana, cujo vetor deve ser respeitado e valorizado. E por falar em princípios, relembre-se que, na concepção jurídica, pode-se dizer que são eles bases e pilastras de todo um sistema normativo, afinal, através deles o julgador poderá se basear tanto na criação quanto na aplicação do Direito propriamente dito ao caso concreto.
Frise-se, porém, que a pretexto de se impor o cumprimento do crédito trabalhista, não se está aqui a negar a importância e, sobretudo, a observância do princípio da natureza real da obrigação. Na prática, a partir da adoção da técnica de ponderação, já que não é possível simplesmente aniquilar princípios colocados em rota de colisão, implica dizer que o devedor irá responder com os seus bens pelos débitos existentes, conforme preceituam os artigos 789 [6] e 824 [7] do Código de Processo Civil.
Acontece que a responsabilidade patrimonial que recai sobre o devedor não anula, como já explicado acima, a incidência do princípio da utilidade em favor do credor, o qual busca a satisfação do crédito trabalhista mediante a constrição de bens necessários para cumprimento da obrigação com base no artigo 831 [8] e 836 [9] Código de Processo Civil.
A propósito, vale lembrar que, em nosso ordenamento jurídico, existem duas teorias consagradas para a aplicação do incidente da desconsideração da personalidade jurídica: (1) de um lado, com fundamento no artigo 50 do Código Civil [10], tem-se a “Teoria Maior”; e (2) de outro, a “Teoria Menor”, com base no artigo 28, §5º do Código de Defesa de Consumidor [11], sendo esta última admitida corriqueiramente na esfera trabalhista.
Aliás, com base no artigo 889 da Consolidação das Leis do Trabalho [12], a aplicação da “Teoria Menor” também encontra guarida judicial na observância da Lei de Execução Fiscal [13] (Lei nº 6.830/80).
Dito isso, certo é que os Tribunais Regionais do Trabalho já foram provocados a emitirem um juízo de valor sobre a temática do incidente de desconsideração da personalidade jurídica inversa ou invertida. Nesse sentido, os magistrados integrantes da Seção Especializada em Execução do TRT-RS da 4ª Região já se debruçaram sobre o assunto [14]. E, ao analisarem um caso envolvendo o tema, a desembargadora Relatora ponderou:
“Tanto a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, quanto a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica são amplamente aplicadas nesta Justiça Especializada e autorizam que os bens particulares do sócio ou do ex-sócio respondam pela execução de débitos trabalhistas da empresa. Na modalidade inversa, permite a desconsideração da autonomia patrimonial da sociedade para responsabilizá-la por obrigação do sócio que esvazia seu patrimônio pessoal (art. 790, inc. II, e art. 795, ambos do CPC; art. 28 do CDC; e art. 50 do CC). (…). Destaca-se, ainda, que no processo do trabalho, não se admite que os créditos do trabalhador fiquem a descoberto enquanto os sócios da empresa empregadora livram seus bens pessoais da execução, quando é indiscutível que se beneficiaram da força de trabalho despendida pelo empregado”.
De igual modo, para os desembargadores da 1ª Turma do TRT-MG da 3ª Região, o instituto do IDPJ invertido é absolutamente aplicável ao Processo do Trabalho, consagrando, na ocasião, a aplicação da “Teoria Menor” [15]. Em seu voto, a desembargadora relatora, asseverou:
“Nessa linha, importante registrar que o Direito Trabalhista consagra a Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica, segundo a qual o simples inadimplemento do débito trabalhista, ou ausentes bens, da empresa devedora, suficientes para garantir a execução, autoriza que os bens patrimoniais dos sócios respondam pelas dívidas contraídas pela empresa executada, conforme arts. 50 do CC/02 e 28 do CDC.
Por sua vez, o instituto da desconsideração inversa faz o caminho contrário, para buscar a efetividade da execução por meio de penhora de bens e valores de empresa que integra o patrimônio do executado, pessoa física, ou seja, empresa da qual o executado figure como sócio. Afasta-se, assim, a autonomia patrimonial da sociedade para responsabilizá-la por obrigação de seu sócio”.
Em arremate, em prestígio aos princípios da boa-fé objetiva e da função social da empresa, é irrefutável a aplicação da teoria da desconsideração inversa ou invertida da personalidade jurídica na execução trabalhista. Portanto, seja com o intuito de evitar fraudes, seja como forma de garantir o pagamento dos débitos trabalhistas, caso seja julgado procedente o IDPJ, na modalidade invertida, poderá a pessoa jurídica responder com o seu patrimônio pelas dívidas contraídas por seus sócios.