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A prevalência do negociado sobre o legislado sob a ótica do STF
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o tema 1.046 da tabela de repercussão geral, deu provimento ao agravo em recurso extraordinário quanto à prevalência do negociado sobre o legislado[1]. Antes disso, o ministro relator, Gilmar Mendes, havia determinado o sobrestamento de todos os casos envolvendo a temática da negociação, cujo leading case abordou as chamadas horas in itinere, ou seja, o tempo gasto do trabalhador no deslocamento entre a sua residência e o trabalho [2].
Por maioria de votos, a tese fixada foi a seguinte:
“São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
Trata-se de questão que sempre foi problemática para a Justiça do Trabalho, tendo em vista que tramitavam milhares de ações envolvendo o assunto [3], segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. Isso porque não são raras as ocasiões em que determinadas cláusulas de convenções e acordos coletivos eram afastadas e/ou anuladas judicialmente.
A respeito do tema, oportunos são os ensinamentos do professor Homero Batista [4]:
“O assunto parece inesgotável. Há dois fundamentos constitucionais normalmente utilizados pelos defensores do ‘negociado sobre o legislado’. O primeiro e mais evidente está no artigo 7º, XXVI, da CF, que refere o reconhecimento das convenções e acordos coletivos, como parte integrante dos direitos trabalhistas. (…). O segundo fundamento está na leitura dos demais incisos do artigo 7º da CF, em conjunto, que nos revelam ser possível (a) majoração de jornada — inciso XIV, (b) compensação de jornada — inciso XIII e, sobretudo, (c) redução salarial Æ inciso VI, por meio de negociação coletiva.
(…) Nesse contexto, avançaram os entendimentos sobre o alcance da negociação coletiva e surgiram, ao longo dos anos pós-1988, cláusulas das mais variadas nos acordos coletivos e convenções coletivas, para o espanto de estudiosos do direito do trabalho. Muitas das cláusulas já nascem fadadas à contestação ou a inconstitucionalidade, pois prejudicam terceiros, sabotam impostos e encargos, adulteram a natureza jurídica das parcelas incontroversamente salariais e retiram direitos previstos na CF. Chega a ser inacreditável que, no repertório de julgados do TST, constem discussões sobre cláusulas que admitem o trabalho noturno de adolescentes, vedam o direito de greve ou fixam taxas diferenciadas para sindicalizados e não sindicalizados, mas essa é uma constante”.
É cediço que com o advento da Lei 13.467/2017 foi inserido o artigo 611-A ao texto celetário [5], estabelecendo que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho terão prevalência sobre a legislação infraconstitucional em determinados assuntos. O referido dispositivo, aliás, traz um rol meramente exemplificativo.
Em sentido contrário, é certo que a reforma trabalhista igualmente estabeleceu — e aqui o fez no formato numerus clausus — as hipóteses de cláusulas normativas que serão reputadas ilícitas para efeitos de negociação coletiva, descrevendo um rol de situações fechadas no artigo 611-B do texto celetista [6].
E neste novo contexto legislativo de intervenção mínima do Estado no pleno exercício autonomia da vontade coletiva, princípio esse positivado no §3º do artigo 8º da CLT, o legislador reformista indicou que, em se tratando de análise pelo Poder Judiciário de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, este deveria se ater apenas aos elementos essenciais da validade do negócio jurídico, previsto no artigo 104 do Código Civil [7].
Do ponto de vista normativo brasileiro, a Constituição Federal prevê em seu artigo 7º, inciso XXVI [8], a autonomia privada coletiva, de modo a conferir validade às normas oriundas de convenção e acordos coletivos, ao passo que do ponto de vista internacional as Convenções 98 [9] e 154 [10] da Organização Internacional do Trabalho garantem o direito e o fomento à negociação coletiva.
Indubitavelmente, o Direito Coletivo do Trabalho possui uma preocupação e um papel fundamental no que diz tange à regulamentação das relações específicas à autonomia negocial coletiva. Nesse prumo, diferentemente do Direito Individual do Trabalho, o Direito Coletivo tem por objetivo a representatividade de um determinado grupo e/ou categoria, de forma que, em tese, há uma equivalência entre os entes coletivos.
Todavia, se é verdade que a Lei 13.467/2017 garantiu um maior poder na negociação coletiva, de igual sorte houve um enfraquecimento dos sindicatos e o efetivo desmonte da organização sindical, sobretudo após a institucionalização do caráter facultativo da contribuição sindical, tornando a negociação coletiva, em certa medida, um quanto desequilibrada.
Frise-se, por oportuno, que, segundo um levantamento realizado pelo IBGE, o número de trabalhadores sindicalizados teve uma queda de 21,7% desde a reforma trabalhista [11]. Noutro giro, um estudo apontou que pelo fato de a reforma trabalhista ter enfraquecido a arrecadação dos sindicatos, isso afetou as negociações e o apoio aos movimentos sociais [12].
Bem por isso, diante do não crescimento do movimento sindical e falta de representatividade de muitos dos entes sindicais, é imperioso uma análise cautelosa sobre essa nova decisão do Supremo Tribunal Federal que, doravante, criou uma certa “flexibilização” das normas trabalhistas.
Dessarte, é imperioso destacar que a Constituição Federal traz como princípio fundamental a dignidade da pessoa, entendido assim como um valor basilar de uma sociedade livre e justa, não se admitindo a violação ao patamar mínimo civilizatório do trabalhador.
Por isso, é natural que tenhamos um período de amadurecimento jurisprudencial acerca das novas diretrizes fixadas pela Suprema Corte no ARE 1.121.633, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.046). Isso porque é indiscutível que o STF referendou, a um só tempo, nessa decisão vinculativa, dois importante princípios basilares envoltos à negociação coletiva: a criatividade jurídica e a adequação setorial negociada.
Os limites, ao que tudo indica, para esta nova moldura da “prevalência do negociado sobre o legislado”, devem ser os direitos que estejam previstos constitucionalmente, além daqueles que tenham fundamento em normas de tratados e convenções internacionais incorporados ao direito brasileiro e, sobretudo, os direitos previstos na legislação infraconstitucional — a exemplo da própria CLT — que assegurem as garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores. Estes últimos, por certo, desde que tidos como absolutamente indisponíveis.
Em arremate, inobstante a negociação coletiva deva ser prestigiada, não se pode admitir, em hipótese alguma, atos de renúncia, traduzidos no despojamento unilateral e sem qualquer contrapartida pelos entes negociantes. Afinal, a tese fixada pelo STF se limitou a dizer que estará dispensada, apenas e tão-somente, a mera explicitação especificada de vantagens compensatórias, mas não afastou o efetivo caráter sinalagmático inerente à própria negociação coletiva — a cada direito, benefício ou vantagem trabalhista limitado ou suprimido se contrapõe a um direito, benefício ou vantagem que se acrescenta ao instrumento coletivo, direta ou indiretamente, em favor dos trabalhadores.