A Justiça do Trabalho precisa pedir perdão. E mudar

Tempo de leitura: 13 minutos

Inspirado pelo excelente artigo do colega Marcel da Costa Bispo Roman publicado aqui nesta ConJur, acatei o desafio de dialogar e retomar minha coluna semanal, após um longo período de imersão reflexiva sobre o mundo jurídico, e trabalhista, em nosso país.

A comunidade jurídica trabalhista está desnorteada com as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de reclamações constitucionais sobre advogados associados, franquias, pejotização, transportadores autônomos de carga, representantes comerciais, salão de cabeleireiros e, finalmente, trabalhadores em plataformas digitais.

O entendimento do STF, para preservar os julgamentos vinculantes efetuados no sentido de que há outras formas de trabalho dignas, que não o vínculo de emprego, e licitude de terceirização em atividade-fim, tem gerado decisões que retiram a competência da Justiça do Trabalho para analisar eventual fraude na contratação de trabalhadores, mesmo que a causa de pedir e o pedido sejam de reconhecimento de vínculo de emprego.

O sentimento geral é de esvaziamento da Justiça do Trabalho, já que o futuro das relações trabalhistas, conforme consenso, não será a utilização da roupagem jurídica do vínculo de emprego. As novas formas de trabalhar pedem outro tipo de regulação.

Logo, conforme o STF vem fixando a matéria, à Justiça do Trabalho caberia apenas processar e julgar o tradicional vínculo empregatício, enquanto este ainda existir.  Em outras palavras, morreríamos por inanição. 

E por qual motivo precisamos pedir perdão? Porque o verdadeiro culpado por este resultado somos nós, a comunidade jurídica trabalhista, nós, usuários da Justiça do Trabalho.

O primeiro grande erro que cometemos foi tratar o conflito social capital-trabalho sempre pelo viés da luta de classes. Instigamos a litigiosidade, os interesses antagônicos, demonizamos os empresários, desconfiamos dos empreendedores, maldizemos os investidores e, por outro lado, enaltecemos a hipossuficiência a ponto de transformá-la em verdadeira incapacidade.

Sim, chegamos ao ponto de entender que um trabalhador empregado não pode fazer escolhas dentro da relação de emprego, que ele deve ser protegido dele mesmo. Viramos absolutistas do princípio da proteção.

Fomentamos um estado de coisas para manter viva a chama original do Direito do Trabalho e, com isso, infantilmente, esquecemos que sem capitalismo simplesmente não existe relação de emprego. Aviltamos nosso garantidor, o empresário. Por isso, vai o primeiro pedido de perdão.

Segundo, perdemos o bonde da história quando relegamos ao segundo plano as demais relações de trabalho, priorizando a relação de emprego como o eldorado da proteção trabalhista, entendendo que qualquer regulamentação diferente seria precarização.

Qualquer tentativa de concessão de direitos trabalhistas mínimos para novas formas de contratação, qualquer modificação nos sacrossantos direitos estabelecidos na CLT, qualquer medida de flexibilização do rígido pacote celetista geravam o mesmo mantra midiático e estigmatizante da precarização.

Com isso, perdemos a melhor oportunidade que surgiu de fortalecermos os dogmas trabalhistas que tivemos, a reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional 45 de 2004, que ampliou a competência da Justiça do Trabalho para todo e qualquer tipo de relação trabalhista.

Ao invés de expandirmos o pensamento para novas regulações do trabalho humano, ao invés de admitirmos novos modelos mais leves e flexíveis para a contratação de trabalhadores em diferentes formas de trabalhar, impedimos sequer que houvesse este debate, tachando de neoliberais fascistas quem ousasse pensar diferente.

Jogamos fora, portanto, as demais relações de trabalho que, agora, o STF classifica como relações civis, comerciais ou, pior, de consumo. Perdão.

Em terceiro lugar, perdão, perdão e perdão pelo que fizemos com a reforma trabalhista de 2017. Aqui todo perdão será pouco pelo que a comunidade jurídica trabalhista fez. A ideologia arcaica do trabalhismo brasileiro, o elogio a uma norma outorgada por um ditador (nossa CLT getulista), a resistência explicita à aplicação de um texto legal, inclusive por setores da magistratura, impediu a última tentativa de modernização capaz de salvar a Justiça do Trabalho.

A Lei 13.467 de 2017, que pretendeu refundar, ainda que parcialmente, o Direito e o Processo do Trabalho continha, em seu bojo, todos os valores necessários para uma nova proteção trabalhista: aumento da liberdade sindical com o fim da contribuição compulsória, reforço à negociação coletiva com prevalência sobre a lei, garantia do mínimo existencial trabalhista como norma de ordem pública, intervenção mínima do Poder Judiciário nas negociações, responsabilidade dos atores sociais no uso da Justiça do Trabalho (sucumbência e gratuidade), além de maior possibilidade do exercício da autonomia individual de vontade.

Está tudo lá. Tudo que o momento atual das relações de trabalho exige: proteção do essencial (artigo 611-B da CLT) e liberdade para construção da proteção adequada via negociação com sindicatos (artigo 611-a da CLT).

Poderíamos ter sido maduros, entendido o momento que vivíamos, nos adaptado às mudanças, mas não, ignoramos a realidade e criamos Jornadas, livros, artigos e jurisprudência para impedir a aplicação da nova lei.

Geramos uma insegurança jurídica nunca antes imaginada, tudo por defesa ideológica de um passado que jamais voltará, cada um pensando nos seus interesses próprios, gananciosos em manter aquilo que nos sustenta, como abutres famintos que não se importam de sorver apenas os restos da verdadeira vítima desse sistema: o empreendedor.

Perdão.

E não para por aí. Temos que pedir perdão ao STF. Orgulhosos como julgadores que sabem mais do que os outros, impregnados do sentimento de que apenas nós conseguimos saber o que é uma “Justiça Social”, não acatamos os rumos traçados pela Corte máxima do país, que há muito já apontava para o entendimento que hoje nos atordoa.

Desde os debates acerca dos contratos de natureza administrativa, passando pelos conflitos de competência sobre sucessão trabalhista de empresas em recuperação judicial, o STF vem sinalizando que nosso exagero geraria a perda de competência.

A facilidade com que a Justiça do Trabalho ignora uma lei para atender seus anseios é de fato impressionante. Com dois princípios julga-se tudo a favor dos trabalhadores, no afã de fazer o bem, de corrigir injustiças históricas, de erradicar desigualdades realizando distribuição de renda.

Transformam-se os magistrados em agentes ativos para obtenção de um fim ideológico, garantido uma expiação de culpa para contribuir com os menos favorecidos, obviamente trazendo para o sacrifício apenas o dinheiro alheio.

E essa mutação não é espontânea, mas provocada pela advocacia trabalhista, que formula as teses e postula pretensões no desejo de encontrar um “bom” juiz capaz de ser sensível à causa, que no mundo paralelo de uma justiça ideal (para eles) transforma de forma corajosa uma tese em obrigação, tudo amparado em abstratas considerações sociológicas que, sob a capa jurídica de um pós positivismo distorcido, concretiza o estrago em decisões de beleza estética e conteúdo duvidoso.

Finalmente, para manter o espaço devido deste recorte, perdão a toda sociedade. Erramos e precisamos reconhecer. A Justiça do Trabalho precisa recomeçar, ser humilde em aceitar que as coisas mudaram, que o mundo a sua volta evoluiu. E, como todos sabemos, um organismo que não acompanha a evolução simplesmente se extingue. Ainda dá tempo.

Por último, aos que não concordam com minhas reflexões, que me perdoem. Fatalmente estaremos juntos lá no fim.

 é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e membro da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT).

Revista Consultor Jurídico, 6 de junho de 2023, 8h00

 

WD Advocacia

Todos os pontos de vista devem ser ouvidos. Nesse sentido, destacamos também opiniões diferentes quanto ao texto acima.

 

Resposta ao Dr. Otávio Torres Calvet

“A comunidade jurídica trabalhista está desnorteada com as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal…” com esta frase, o ilustre Magistrado, Dr. Otávio Torres Calvet, dá início ao texto de suas considerações político-jurídica fazendo crer que iria concluir seu brilhante artigo em defesa da Justiça do Trabalho atribuindo toda a culpa ao Supremo Tribunal Federal, mas, para surpresa do leitor começa logo a distanciar-se dessa linha de raciocínio para assumir toda a culpa pela provável – em sua opinião –  extinção da Justiça do Trabalho a si próprio a seus colegas de Magistratura, usando o pronome pessoal no plural. Para não deixar dúvida de que a postura do articulista é político-jurídica, transcrevo outra expressão contida no referido texto: “fomentamos um estado de coisas para manter a chama do Direito do Trabalho e, com isso, infantilmente esquecemos que sem capitalismo simplesmente não existe relação de emprego. Aviltamos nosso garantidor, o empresário.” Mais adiante: “… perdemos o bonde da história quando relegamos ao segundo plano as demais relações de trabalho, priorizando a relação de emprego como o eldorado da proteção trabalhista entendendo que qualquer regulamentação diferente seria precarização.”

Peço minhas desculpas ao nobre expositor para com a minha franqueza, assaz respeitosa, discordar e dizer-lhe que o mal começa com a falta de vocação para a Magistratura Trabalhista cujo melhor exemplo disso é ele mesmo que nos dá com suas próprias palavras.

Sua acusação inicial ao STF, poderia ter descambado para o reconhecimento de que a magna corte tem proferido nos últimos tempos decisões infelizes no que diz respeito à organização sindical brasileira, das quais cabe destaque àquelas que inibem o seu direito de custeio pela categoria representada. Entretanto, tal atordoamento a que se refere o ilustre magistrado articulista, que infelizmente é real, provém de outros fatos dentre os quais, além da já citada falta de vocação, a arrogância de muitos, consequente de um complexo de inferioridade que os levou, por exemplo, a preferirem aplicar o Código do Processo Civil, não subsidiariamente, mas como prioridade, em detrimento das regras trabalhistas. Esse complexo de inferioridade é que propiciou desejos de mudanças na própria estrutura da Justiça do Trabalho, como por exemplo, a extinção da representação classista que a caracterizava como justiça federal especializada. Preceitos básicos que norteavam a Justiça do Trabalho como a concepção da hipossuficiência do obreiro em relação ao seu empregador; a irrenunciabilidade do direito; o natural temor reverencial que obriga o obreiro a aceitar o inaceitável etc.; foram sendo gradativamente desprezados a ponto de serem considerados ridículos, atualmente. Tudo feito em nome das regras básicas do direito comum, como por exemplo a autonomia da vontade das partes, cuja importância social, mesmo sendo gigantesca, é incomparável à natureza social do Direito do Trabalho.  Ao jurista pouco afinado com a questão social no mundo do trabalho e com o próprio humanismo é imperceptível. Eis aí o maior mal, posto que, ao humanista é impossível conceber a ideia de quem pode mais sofrer menos. O vínculo empregatício está sendo ridicularizado sob a alegação de que o indivíduo deve ser o dono de sua própria vontade e isso constitui o maior dos pecados que se poderia cometer no âmbito da relação capital e trabalho, porquanto isso é permitir-se que um ser humano seja explorado por outro que pode mais. Ora, o Estado foi concebido exatamente para evitar isso. o problema, portanto, é mais amplo: não é apenas a Justiça do Trabalho que se encontra atordoada. Há uma enorme carência no âmbito do Direito, como Ciência Social, humanista. Eis aí o cerne da questão. Sendo fruto do bom senso é perceptível ao Jurista vocacionado a diferença entre as forças do capital e do trabalho, mesmo que filosoficamente se possa asseverar que, por si só, um não existe sem o outro e que o Estado tem o dever de proteger a ambos, até porque o progresso da nação está sempre a depender dessa harmonia.

A mania, já envelhecida, de impor desgaste na legislação trabalhista brasileira persiste no nobre Magistrado articulista, quando menciona de forma pouco respeitosa o nome do Presidente Getúlio Vargas, como se ele fosse um ditador do proletariado, ao que, aliás, o expositor demonstra alhures certa repugnância. Na verdade, Getúlio Vargas teve sensibilidade suficiente para enxergar um futuro longínquo – que são os dias atuais – onde mudanças perigosas poderiam acontecer e quis evitá-las, mudanças que o articulista defende em sua proposição, sem atentar para o risco que corre a Paz Social que é, sem dúvida, o bem maior a ser buscado por todos, principalmente pelos juristas.  Ao operador do Direito, seja qual for o segmento, será muito mais louvável ter sempre presente o mandamento constitucional que sugere “construir uma sociedade livre, justa e fraterna” ( CF-Art.3º, I), posto que de fundamental importância que o Direito, como ciência social que é, não permita que a injustiça se estabeleça na relação de emprego, de modo que se cumpra igualmente o artigo 1º, II,III e IV, preservando-se, destarte, A CIDANIA, A DIGNIDADE HUMANA E OS VALORES SOCIAIS DO TRABALHO E DA LIVRE INICIATIVA. Dentro desses parâmetros é que devem atuar: sindicatos, Justiça do Trabalho, Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil.

A relação de emprego sempre dignifica. Aliás, prova maior disso é a avidez nos concursos públicos. Não sei se seria justo perguntar-se ao ilustre articulista se ele se sentiria mais seguro sem as garantias peculiares ao cargo que ocupa.

São Paulo 14 de junho de 2023.

  • Francisco Calasans Lacerda é Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, sob nº 63.578, Diretor da CONTRATUH e da FETRHOTEL e Presidente do SINTHORESP.

Fonte: https://www.contratuh.org.br/resposta-ao-dr-otavio-torres-calvet/