A intempestividade do recurso: vício sanável ou insanável?

A intempestividade do recurso: vício sanável ou insanável?

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A tempestividade é requisito de admissibilidade intuitivo e comum a todos os recursos. Mas a intempestividade é vício sanável ou insanável? É possível convalidar a perda de prazo?

O tratamento jurídico das invalidades processuais sempre esteve atrelado a dois critérios: 1) a natureza pública ou privada do interesse protegido pela norma processual e 2) a possibilidade de sua derrogação pela vontade das partes [1].

Nesse contexto, as nulidades absolutas, que podem ser conhecidas de ofício e não admitem convalidação, sempre decorreram da violação a uma norma posta no interesse público e, por isso, cogente, inderrogável pela vontade das partes — por exemplo, as regras de competência absoluta. Já as nulidades relativas, que também podem ser conhecidas de ofício, mas podem convalidadas, sempre decorreram da violação a norma posta no interesse das partes, mas inderrogável pela vontade delas — por exemplo, a exigência de representação por advogado no procedimento comum. Por fim, a anulabilidade, também passível de convalidação e dependente de provocação das partes, sempre foi vista como consequência da violação a uma norma posta no interesse das partes, porém derrogável por convenção delas [2].

Em outras palavras, a gravidade do vício nunca foi critério relevante para a sua categorização. O que importava era a natureza pública ou privada do interesse protegido pela norma e a possibilidade de sua derrogação pela vontade das partes.

Esse sistema de invalidades, desenvolvido por Galeno Lacerda com base no CPC de 1939, manteve-se em larga medida inalterado durante a vigência do Código de 1973. O CPC de 2015, contudo, deu novos contornos ao tema. E fez isso por meio de normas dissonantes: enquanto uma dá à intempestividade tratamento mais rigoroso, outra parece flexibilizar o vício.

Código de Processo Civil de 2015 e norma mais rigorosa
O artigo 1.029, §3º, do CPC, dispõe que o “Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça poderá desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave”. Como se vê, o legislador exclui a intempestividade do rol de vícios que podem ser desconsiderados pelos tribunais superiores. Apenas recursos tempestivos podem ser recebidos. O legislador parece criar uma presunção de gravidade contra o decurso de prazo, reputando-o absolutamente nulo.

Foi exatamente nesse sentido que a Corte Especial do STJ interpretou a norma. Para o tribunal, a intempestividade “[…] é tida pelo novo CPC como vício grave e insanável” [3]. E vinculou essa interpretação ao artigo 1.003, §6º, do CPC, segundo o qual o recorrente deverá comprovar, no ato da interposição do recurso, a ocorrência de feriado local, recesso, paralisação ou interrupção do expediente forense.

A segunda-feira de Carnaval, a Quarta-Feira de Cinzas, os dias que precedem a sexta-feira da paixão e, também, o dia de Corpus Christi, não são feriados forenses, previstos em lei federal. Assim, caso haja suspensão do expediente nessas datas, é necessário anexar, no momento da interposição do recurso, o ato normativo local com a respectiva previsão de suspensão da contagem do prazo.

A simples menção à ausência de expediente nas razões recursais, bem como a juntada de documentos não dotados de fé pública, não são hábeis a comprovar a tempestividade do recurso especial. Exige-se, para tanto, documento oficial ou certidão expedida pelo Tribunal de origem.

Não observada essa exigência no ato da interposição, será necessário analisar se a ausência de comprovação do feriado local (ou de outra causa da suspensão da contagem de prazo) gera prejuízo à parte recorrente. Se o recurso for tempestivo mesmo desconsiderando a suspensão do prazo não comprovado, deverá ser conhecido. Ou seja, o não-conhecimento do recurso pressupõe que a comprovação da suspensão da contagem do prazo seja imprescindível para a sua tempestividade.

Por mais que a não comprovação de suspensão da contagem do prazo possa parecer menos grave do que a perda do prazo propriamente dita, o vício, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é, em regra, insanável. O fundamento de tal entendimento é que o CPC prevê, expressamente, que a comprovação deve ocorrer no ato da interposição do recurso.

Código de Processo Civil de 2015 e norma mais flexível
Em sentido oposto ao rigorismo imposto pelo artigo 1.029, §3º, do CPC, os artigos 190 e 191 do CPC permitem às partes estabelecer convenções processuais sobre seus poderes, deveres, faculdades e ônus — inclusive para fixar calendário processual. Ou seja, é lícito às partes derrogar os prazos recursais fixados em lei tanto para reduzi-los quanto para ampliá-los, adequando-os à especificidade da causa. Nesse sentido, se as partes podem afastar a incidência de um prazo posto em seu interesse, a intempestividade do recurso seria, quando muito, mera anulabilidade — passível, portanto, de correção.

Mas quais acontecimentos justificariam a correção do vício de intempestividade? Uma exceção à insanabilidade, reconhecida pelo STJ, é nos casos em que o advogado é induzido em erro pelo sistema eletrônico de peticionamento.

Grande parte dos processos eletrônicos tramitam através do Projudi, E-proc e PJE. Os próprios sistemas comunicam os advogados habilitados dos atos processuais através de intimação. Após expedida a intimação, o patrono possui dez dias abri-la, sob pena de leitura automática — momento em que o sistema indica os termos inicial e final do prazo legal.

Não é raro, portanto, que sistemas automatizados de contagem de prazo dos Tribunais induzam advogados em erro, até mesmo aqueles mais experientes, uma vez que da abertura da intimação já são indicados o termo inicial e final do prazo recursal, considerados os feriados locais.

Nesses casos, a Corte Especial do STJ decidiu que “[…] a falha induzida por informação equivocada prestada por sistema eletrônico de tribunal deve ser levada em consideração, em homenagem aos princípios da boa-fé e da confiança, para a aferição da tempestividade do recurso”. (ED em AREsp nº 1759860/PI, relatora ministra Laurita Vaz, DJe 21.3.2022). Presume-se, nesse caso, que o advogado deverá demonstrar que o sistema automatizado de fato previa como termo final a data por ele informada, e que interpôs o recurso dentro desse prazo.

ratio aplicada pelo STJ é correta e não destoa daquilo que há anos se aplica sob a rubrica de teoria da aparência: quando o ato processual é praticado por agente público, presume-se sua validade, de modo a proteger a confiabilidade da relação jurídica. Excepcionalmente, portanto, é sim possível sanar a intempestividade do recurso.

Nulidade absoluta ou anulabilidade?
A nosso ver, a intempestividade permanece sendo, no quadro geral das invalidades, nulidade absoluta — reconhecível de ofício e, em regra, não sujeita a convalidação. Apenas excepcionalmente se pode afastá-la, como visto acima.

O fato de os artigos 190 e 191 autorizarem as partes a convencionar sobre prazos processuais não afasta essa conclusão. A mera possibilidade de derrogação do prazo legal não transforma a intempestividade em simples anulabilidade. No quadro geral do CPC de 2015, quase toda norma procedimental pode ser alterada por convenção das partes. O critério identificado por Galeno Lacerda nos anos 1950 não é mais útil à compreensão do CPC de 2015, sob pena de quase toda invalidade ser reduzida à mera anulabilidade.

Ora, a perda do prazo é, de fato, vício grave e, em regra, incorrigível. Afinal, é impossível retroagir a data de interposição do recurso. Mas há que se distinguir a intempestividade da comprovação de tempestividade. Ou seja, se o prazo é respeitado, mas a ocorrência de suspensão da contagem — essencial à sua tempestividade — não é comprovada, o vício é facilmente sanável. Basta juntar aos autos documento oficial ou certidão do tribunal de origem que comprove a suspensão.

Concordamos, pois, com Elpídio Donizetti, quando afirma que é “[…] perfeitamente possível a aplicação do artigo 932, parágrafo único, do novo CPC, segundo o qual: ‘Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de cinco dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível'” [4]. Um dos pilares do CPC de 2015 é o princípio da primazia do julgamento de mérito, que busca a superação dos vícios processuais. O julgador deve dar a oportunidade para que as partes corrijam vícios procedimentais, possibilitando a análise do mérito e a consequente solução do conflito por meio da decisão judicial.

Defendemos, pois, que o princípio da primazia do mérito deve prevalecer sobre a exigência 1.003, §6º, do CPC, cabendo ao órgão julgador, identificada a ausência de documento oficial ou certidão do tribunal de origem, intimar o recorrente para juntá-lo (a) aos autos, sob pena de não conhecimento do recurso.

Essa interpretação não encontra óbice nos artigos 434 e 435 do CPC, que restringem a juntada de prova documental em momento posterior ao do protocolo do recurso. Tais disposições aplicam-se aos documentos que visam à comprovação de fatos controvertidos. E a suspensão da contagem de prazo, seja por feriado local, recesso, paralisação ou interrupção do expediente do Tribunal, é fato notório.

O artigo 1.003, §6º, do CPC, tampouco impede essa interpretação. É verdade que a regra exige a comprovação de feriado local no momento da interposição do recurso excepcional. Mas também é verdade que regras podem ser derrotadas por princípios. E o princípio da primazia do julgamento do mérito deve orientar a interpretação de todas as regras estabelecidas pelo legislador.

[1] LACERDA, Galeno. Despacho saneador. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 72
[2] Idem, ibidem, p. 72-110.
[3] AResp 957.821 – MS (2016/0196884-3). Redatora para o Acórdão ministra Nancy Andrighi. J. 20.11.2017. DJe 19.12.2017.
[4] DONIZETTI, Elpídio. Curso de direito processual civil. 25ª Edição — Barueri [SP]: Atlas, 2022. p. 1297
 é advogado, professor, doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e LL.M. pela Syracuse University em Nova York.
 é advogada controller e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Positivo (UP).
 é advogado.

Revista Consultor Jurídico, 25 de janeiro de 2023, 17h22