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Recentemente, o site oficial do Senado veiculou a notícia de que havia sido “aprovado projeto que isenta trabalhador já aposentado de recolher FGTS” [1]. A manchete poderia causar espanto por uma série de razões, desde a flagrante inconstitucionalidade da medida [2] até a mentira descarada de que, atualmente, o trabalhador, aposentado ou não, tem de recolher Fundo de Garantia.
Como todos sabem, ou pelo menos deveriam saber, o FGTS — considerado um direito dos trabalhadores — foi criado como um dos mais graves golpes da ditadura militar contra a classe operária. Idealizado por Octávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, respectivamente ministros da Fazenda e do Planejamento do governo Castello Branco, o fundo foi uma das primeiras [3] medidas que, visando flexibilizar as relações de trabalho, na prática extinguiram direitos dos trabalhadores.
Com efeito, o FGTS foi criado em 1966 como uma forma de retirar do trabalhador o direito à estabilidade decenal, prevista no artigo 492 da CLT. Na época, o artigo 1º da Lei 5.107 dispunha expressamente que restava mantida a garantia de emprego prevista na Consolidação, “assegurado, porém, aos empregados o direito de optarem pelo regime do FGTS”.
Para aqueles empregados que “optassem” pelo novo regime, o empregador ficaria obrigado a recolher, todo mês, em uma conta vinculada ao trabalhador 8% da remuneração paga no mês anterior. Repita-se, a obrigação do recolhimento era e continua sendo do empregador, nada podendo ser descontado do trabalhador a tal título.
Ocorre que, na prática, as empresas passaram a condicionar a contratação de novos trabalhadores à “opção” pelo regime do FGTS. Nos círculos trabalhistas da época passou-se a gracejar que o Fundo não era opcional, mas “optatório“; um neologismo que demonstrava que a “opção” por parte do trabalhador que tivesse a intenção de ser contratado era, na realidade, obrigatória. Como isso, praticamente nenhum trabalhador mais foi contratado com a possibilidade de adquirir a estabilidade decenal prevista na CLT.
Com a redemocratização do Brasil e a promulgação de uma nova Constituição, carinhosamente apelidada de “Constituição Cidadã”, a esperança da classe operária poderia se renovar. A Constituição, que elevou os direitos dos trabalhadores ao patamar de direitos fundamentais, estendeu o direito ao FGTS a todos os trabalhadores urbanos e rurais (artigo 7º, III).
Diante disso, uma possibilidade de interpretação da norma constitucional poderia ser a de que os trabalhadores não mais precisariam “optar” entre o FGTS ou a garantia de emprego, ainda vigente na CLT. A opção não mais fazia sentido tendo em vista que, além de garantir o direito ao Fundo, a Constituição também assegurava a todos os trabalhadores urbanos e rurais, no inciso I do mesmo artigo, o direito à “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa”.
É certo que o texto constitucional exigia uma lei complementar para regulamentar o direito, tratando-se do que a doutrina convencionou chamar de norma de eficácia limitada. Ainda que não se atribua eficácia plena ao dispositivo, não se pode simplesmente destituí-lo de qualquer eficácia. Nesse sentido, José Afonso da Silva argumenta que todas as normas constitucionais, até mesmo aquelas com eficácia limitada, têm certa eficácia jurídica imediata, direta e vinculante, elencando, dentre outros, os seguintes casos: I – estabelecem um dever para o poder público e para o legislador ordinário, em especial; II – condicionam a legislação futura, com a consequência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem; III – informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação dos componentes do bem comum; IV – constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; V – condicionam a atividade discricionária da administração e do Judiciário [4].
Não obstante tão lúcida lição, poder-se-ia argumentar que a CLT não poderia prever garantia de emprego por não se tratar de lei complementar, medida legislativa exigida pelo texto constitucional. Esse argumento, entretanto, já foi enfrentado – e afastado – pelo STF que entendeu que, mesmo tendo sido promulgado como lei ordinária, o CTN foi recepcionado pelas Constituições de 1967/69 e 1988 como lei complementar [5].
Não obstante, contrariando a melhor hermenêutica constitucional e a regra do in dubio pro operario, decorrência direta do princípio da proteção [6], a interpretação que a ampla maioria atribuiu ao dispositivo constitucional foi a de que, ao estender o direito ao FGTS a todos os trabalhadores, a Constituição Cidadã – aquela mesmo que colocou a garantia de emprego como direito fundamental – não recepcionou o artigo 492 da CLT, afastando definitivamente a possibilidade de aplicação da garantia decenal de emprego. Tal entendimento foi tão amplamente adotado que, em pouco tempo sequer tal garantia passou a ser questionada nos processos judiciais.
Passados trinta e quatro anos de sua existência, no ano de 2000, o FGTS foi estendido aos trabalhadores domésticos, dessa vez como uma opção dos empregadores. Ou seja, somente os empregadores domésticos “bonzinhos” que quisessem efetivar esse direito aos seus empregados, é que passariam a recolher os valores do Fundo. Tiveram que passar mais quinze anos para que a Lei Complementar 150/2015 assegurasse o FGTS como um direito efetivo aos trabalhadores domésticos.
Pois bem, passados mais de meio século desde o surgimento do instituto, no ano de 2023, surge uma nova proposta legislativa. De autoria do senador Mauro Carvalho Junior (União-MT), o Projeto de Lei 3.670/2023 visa retirar dos trabalhadores aposentados o direito ao FGTS. Aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado, o PL não deve sequer ser votado em Plenário, indo diretamente para a Câmara dos Deputados. Não obstante a relevância da medida, até o momento em que se escreve esse texto, apenas seis pessoas haviam votado na consulta popular que se encontra no site do Senado: três votos a favor e três, contra [7].
O que surgiu como uma medida política para retirada de um dos direitos mais importantes dos trabalhadores urbanos: a garantia da sua fonte de subsistência e de sua família; se transformou em um direito fundamental dos trabalhadores urbanos e rurais; há pouco tempo estendido também aos domésticos; agora corre sério risco de ser simplesmente extinto do ordenamento jurídico, pelo menos para os trabalhadores aposentados.
E o pior, tudo ocorre como se os trabalhadores estivessem sendo agraciados com menos um encargo. A publicação do Twitter oficial do Senado Federal, que veicula a notícia tem a desfaçatez de colocar a imagem de um casal de idosos com boletos e uma calculadora, insinuando que a nova medida legislativa lhe diminuiria os encargos sociais [8].
A forma que Congresso trata os trabalhadores aposentados nos faz lembrar da mulher árabe que, tendo recebido uma bofetada do seu marido, fora queixar-se a seu pai, pedindo vingança. Então o pai pergunta à filha: “Em qual face recebeste a bofetada?” Ao responder que o marido havia lhe atingido a face esquerda, o pai lhe desfere uma bofetada na face direita e diz: “Pronto, agora estás vingada, vai dizer ao teu marido que ele bateu em minha filha, mas que eu bati na mulher dele” [9].
Esse texto poderia acabar aqui. Mas também poderíamos nos questionar: teria como os trabalhadores escaparem da vingança do pai árabe? Acreditamos que sim.