Equivocada aplicação do Tema 629/STJ: “solução fácil” para problema complexo

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De cara, confesso que pra mim soa atécnico a extinção do feito, sem resolução do mérito, depois de o juiz já ter se lançado à tarefa de valoração das provas dos autos, reconhecendo, ao final do processo, sua ausência/insuficiência.

No entanto, este nem de longe é o problema maior. O Tema 629/STJ vem sendo aplicado como solução para dúvidas e, até mesmo, ausência de uma devido processo legal [1]. Tomamos como exemplo aquele único documento rural apresentado como início de prova material. Isso não tirava do juiz a possibilidade de reconhecer o tempo de serviço rural com fundamento no princípio in dubio pro misero. Hoje, na dúvida, alguns juízes enveredam para a aplicação do Tema 629/STJ, o que nada ou pouco ajudará o segurado que acostou aos autos o único documento que tinha.

Quando o que está em jogo é um período de tempo de serviço especial, já sabemos que, em muitos casos, a prova pericial é condição de possibilidade para a comprovação dos fatos alegados. Por isso, ao autor cabe demostrar a existência de evidências sérias do labor especial, capazes de justificar a necessidade/utilidade da prova pericial, vale dizer: a partir de um padrão de dúvida relevante. No entanto, na dúvida, muitos juízes estão extinguindo o feito, sem resolução de mérito, com fundamento no Tema Repetitivo 629/STJ.

É surreal o autor esperar mais de dez anos na justiça para o juiz extinguir o feito com fundamento na ausência de dados que poderiam ser supridos pela prova pericial ou testemunhal — lembrando que não se admite a prova exclusivamente testemunhal como prova nova. Como extinguir o feito com todas as implicações que isso tem: decadência, prescrição demora, judicialização, etc?

Ao final dum processo que não observou o devido processo legal, ao segurado resta agora fugir — desesperadamente — da coisa julgada, a fim de que seja possibilitada a impugnação do formulário PPP na esfera trabalhista, com vistas a uma nova ação previdenciária. No Mito de Sísifo, um ensaio filosófico escrito por Albert Camus, em 1941, o último capítulo conta a história de um homem que, depois de desafiar a morte, é enviado ao Hades e condenado pelos deuses a rolar uma pedra até o alto da montanha, de onde ela desce de novo — e assim eternamente. No dia-a-dia do advogado, estamos sempre rolando a pedra e, em alguns momentos, com ela apostando corrida morro abaixo — tamanho o desespero!

Não há motivos para festejar, sob pena de estarmos alimentando um mostro. É verdade que, na medida em que o juiz não pode postergar sua decisão na espera de melhores provas ou informações, há que se ter maior tolerância no que diz respeito à garantia da coisa julgada. Agora, isso não aproveita o processo em curso, quer dizer, em que ainda é possível se esgotar todos os meios de prova! Estamos colocando a carroça na frente dos bois!

Abre-se um parêntese para dizer que a tese fixada no REsp 1.352.721/SP não aproveita apenas processos em curso, mas também situações em que o processo anterior foi julgado improcedente, no mérito, com fundamento na ausência ou insuficiência de provas. O que confirma tal orientação: Agravo Em Recurso Especial nº 1.754.627–RS, Agravo em Recurso Especial nº 1.412.411–RS, AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 617.362–RS, Recurso Especial nº 1.580.083–PE, Recurso Especial nº 1.889.192–RJ, AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 459.462–RS, Agravo de Instrumento nº 1.500.631-RS e Agravo em Recurso Especial nº 688.800–RS, para citar apenas estes [2].

Admite-se, portanto, uma nova ação qualificada por novos documentos, desde que o novo conjunto provatório venha suprir, no ponto, a ausência ou insuficiência de provas no processo anterior.

Seria engraçado se não fosse triste, mas tanto falamos em “processo previdenciário”, no sentido de um lugar mais “colorido” — em que se deve imprimir um sentido mais humano e social às regras processuais, vale dizer: sob pena gerar significativo déficit protetivo do destinatário das normas previdenciárias —, mas sequer o núcleo duro do processo civil é observado!

Deve ter ficado claro, mas o Tema 629 é o menor dos males, como se costuma dizer. A sua aplicação, por si só, é um minus em relação a um processo conduzido ao arrepio dos mais comezinhos princípios processuais. Nesses processos, não há que se falar em coisa julgada: não por ausência ou insuficiência de provas, mas em razão das restrições probatórias e, consequentemente, limites à cognição do juiz, conforme preconiza o artigo 503, §2º, do CPC.

A extinção do feito tornou-se uma “solução” fácil para um problema complexo. E nesse sentido, os filmes da franquia Harry Potter me ensinaram: “Haverá um momento em que teremos que escolher entre o que é fácil e o que é certo” (Alvo Dumbledore). Enfim, nunca pensei que o Tema 629 seria utilizado em prejuízo do segurado …acho que o ministro Napoleão, relator do precedente, muito menos! Para terminar com uma frase do Lenio Streck: “Justiça, para mim, é para solucionar problemas, não para criá-los.”

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[1] O que diz o Tema Repetitivo 629/STJ: “A ausência de conteúdo probatório eficaz a instruir a inicial, conforme determina o artigo 283 do CPC, implica a carência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo, impondo sua extinção sem o julgamento do mérito (artigo 267, IV do CPC) e a consequente possibilidade de o autor intentar novamente a ação (artigo 268 do CPC), caso reúna os elementos necessários à tal iniciativa”.

[2] A tese fixada no REsp 1.352.721/SP não colocou um fim na coisa julgada secundum eventum probationis. Às vezes, uma tese jurídica fixada sob a sistemática dos recursos repetitivos é relativizada a partir de decisões posteriores (disappoval), confirmando, na prática, posição coincidente com a tese vencida, quer seja pela falta de distinção técnica entre os institutos, quer seja porque a divergência, no julgamento do precedente, era meramente verbal. Em poucas palavras, ou se pretendia dizer a mesma coisa; ou se está relativizando a tese, para dizer a mesma coisa.

Revista Consultor Jurídico, 11 de julho de 2023, 6h06
WD Advocacia
Tema Repetitivo 629: A ausência de conteúdo probatório eficaz a instruir a inicial, conforme determina o art. 283 do CPC, implica a carência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo, impondo sua extinção sem o julgamento do mérito (art. 267, IV do CPC) e a consequente possibilidade de o autor intentar novamente a ação (art. 268 do CPC), caso reúna os elementos necessários à tal iniciativa.
Para conhecer um pouco mais, matéria do Portal Previdenciarista:

Processo previdenciário: quando não há provas o mérito não deve ser resolvido

Colegas previdenciaristas! Hoje abordo um tema importantíssimo e nem sempre muito lembrado: a não resolução do mérito da ação quando o conjunto probatório é insuficiente. A importância do assunto reside no fato óbvio de que quando não há mérito resolvido não há coisa julgada, possibilitando o ajuizamento de nova ação. Ademais, a matéria já foiLeia mais
Colegas previdenciaristas! Hoje abordo um tema importantíssimo e nem sempre muito lembrado: a não resolução do mérito da ação quando o conjunto probatório é insuficiente.
A importância do assunto reside no fato óbvio de que quando não há mérito resolvido não há coisa julgada, possibilitando o ajuizamento de nova ação.
Ademais, a matéria já foi pacificada pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema Repetitivo nº 629. Por isso devemos estar atentos a todas as possibilidades de aplicação da tese. É disso que falo a seguir.

A tese firmada no Tema 629 do STJ

Quando não são juntados documentos suficientes à comprovação do direito do segurado ao benefício previdenciário, o processo deve ser extinto sem resolução de mérito, possibilitando a proposição de nova ação.
Foi exatamente este o entendimento fixado pelo STJ no julgamento do Tema Repetitivo nº 629. Reproduzo a tese a seguir:

Tema Repetitivo 629: A ausência de conteúdo probatório eficaz a instruir a inicial, conforme determina o art. 283 do CPC, implica a carência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo, impondo sua extinção sem o julgamento do mérito (art. 267, IV do CPC) e a consequente possibilidade de o autor intentar novamente a ação (art. 268 do CPC), caso reúna os elementos necessários à tal iniciativa.

Veja-se que, por se tratar de julgamento proferido em 2015, os dispositivos mencionados são relativos ao CPC de 1973.
Não obstante, existem disposições análogas no CPC vigente. Quando falamos de extinção da ação sem julgamento mérito a previsão está no artigo 485, III do CPC/2015.
Por outro lado, quando falamos na possibilidade de intentar novamente a ação a previsão está no artigo 486 do CPC/2015.
Assim, a tese ainda tem perfeita aplicação com a nova lei processual!

 

Caráter vinculante da decisão

É sempre bom relembrar que, quando falamos em julgamento de tema repetitivo pelo STJ, estamos falando de teses com efeito vinculante.
Ou seja, o juízo de primeiro ou segundo grau deve observar o precedente, ainda que seja para distingui-lo do caso concreto.
A eficácia vinculante deste tipo de julgamento está prevista no artigo 927 do CPC/2015, dispositivo de conhecimento imprescindível para o advogado previdenciarista, visto a quantidade de teses recentemente julgadas que possuem esta qualidade.

 

A tese só tem aplicação em casos rurais?

Respondendo: não!
No entanto, já me deparei com decisão de primeiro grau (caso de aposentadoria especial) fundamentando o não reconhecimento do direito na ausência de provas e mencionando que o tema 629 do STJ só tem aplicação para os casos rurais.
Uma interpretação no mínimo ilógica! Ora, em nenhum momento a tese menciona sua aplicação restrita a casos de reconhecimento de atividade rural. Muito pelo contrário, da leitura do voto do Relator, Ministro Napoleão Nunes Maia, se extrai claramente o caráter geral de aplicação da tese.
Nesse sentido destaco o inspirado trecho do voto do I. Relator:

As normas previdenciárias devem ser interpretadas de modo a favorecer os valores morais da Constituição Federal/1988, que prima pela proteção do Trabalhador Segurado da Previdência Social, motivo pelo qual os pleitos previdenciários devem ser julgados no sentido de amparar a parte hipossuficiente e que, por esse motivo, possui proteção legal que lhe garante a flexibilização dos rígidos institutos processuais. Assim, deve-se procurar encontrar na hermenêutica previdenciária a solução que mais se aproxime do caráter social da Carta Magna, a fim de que as normas processuais não venham a obstar a concretude do direito fundamental à prestação previdenciária a que faz jus o segurado.

Em resumo, sempre que um processo previdenciário for julgado improcedente por ausência de provas – seja ele de qualquer espécie de benefício, devemos  invocar o Tema 629 do STJ para que a extinção ocorra  em julgamento de mérito, evitando a formação de coisa julgada material.
Essa alegação pode se dar em embargos de declaração. Para isso indico o seguinte modelo aos colegas:  Embargos. Omissão. Precedente vinculante. Ausência de início de prova material. Tempo rural. Extinção sem resolução de mérito
Por fim, esse é mais um tema em que a responsabilidade da advocacia previdenciária salta aos olhos. Estejamos atentos. Forte abraço!
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24 de junho de 2020, 14:43

(Atualizado em 24 de junho de 2020, 14:43)

Fonte: Previdenciarista
Link: Processo previdenciário: quando não há provas o mérito não deve ser resolvido (previdenciarista.com)